Tuesday, December 11, 2007

OS FORTINS DO RIO GUADIANA NOS CONCELHOS DE BEJA E VIDIGUEIRA


ICONOGRAFIA PACENSE II




Os fortins do rio Guadiana e a necessidade da sua classificação patrimonial[1]


A chamada de atenção que desde 1996 temos vindo a realizar, através do jornal Diário do Alentejo, da Agenda Cultural de Beja, de exposições de arte e documentais sobre a fortificação do Guadiana, têm alcançado e seduzido, além de alguns civis, algumas patentes militares do Regimento de Infantaria Nº3 de Beja. Assim, em 11 de Maio (Dia do Regimento) de 1998 realizámos em colaboração com o RI3, uma exposição sobre Beja seiscentista, na qual, pela primeira vez, a maioria dos militares presentes tomou contacto com a linha defensiva do rio Guadiana, durante a guerra da Restauração de Portugal (1640-1668), e com as primeiras edições bibliográficas das “Lettres Portugaises”, atribuídas a Soror Mariana Alcoforado.
Mais tarde, em 11 de Maio de 2000, organizámos de novo com o RI3, então sob o comando do Cor. Inf.ª Adelino de Matos Coelho, outra exposição, mais completa, sobre o mesmo tema. Foi, então, oferecida a algumas das pessoas presentes uma pequena monografia, policopiada, organizada pelo comandante (com a nossa colaboração), intitulada Fortificação militar no Rio Guadiana.
O sistema de fortificação da margem direita do rio Guadiana é deveras engenhoso. Com efeito, a defesa dos principais locais de passagem a vau, a protecção necessária ao normal funcionamento dos moinhos, a manutenção de uma pequena e eficaz força dissuasora, a partir de um forte isolado de reduzidas dimensões, traduz não só uma economia de meios como obra estratégica assinalável. A cobrança do real d’água e de outros impostos destinados à fortificação abaluartada de Beja, sob projecto de Nicolau de Langres (MATTOS, 1941, 103), levaram o mesmo caminho das provisões da região, seguindo, tudo, para a conclusão das praças-fortes raianas do Alto Alentejo, então muito mais assediadas por Castela.
A ameaça de uma investida sobre Beja que há muito extravasara os seus muros medievais, praticamente indefensáveis, a caída de Serpa e de Moura, além das investidas do condado de Niebla sobre Mértola, parecem ter motivado ainda mais os concelhos confinantes da margem direita, a sul da serra do Mendro, Vidigueira, Beja e Mértola, a experimentar uma solução diferente da dos grandes fortes permanentes – caros e demorados na sua construção, além de exigirem um maior contingente militar. Era necessário manter o rio como última alternativa de fronteira, e um pequeno grupo de homens, atentos, bem posicionados, valeriam por muitos mais[2].
Cristóvão Pantoja[3], desde 1658, governador militar de Beja e sua comarca, com a patente de mestre de campo, equivalente a coronel, recebe em 1660 um louvor do rei, a pedido do município bejense, pelo seu notável empreendimento e activa diligencia nas obras de defesa da cidade, mormente na fortificação dos vaus do Guadiana que punha a coberto toda a região dos percalços de uma invasão (RIBEIRO, 1940, 83). Já em 1646 o cabido da Sé de Évora manifestara, em pedido endereçado ao governador das armas do Alentejo, o mestre-de-campo-general Joane Mendes Vasconcelos, a necessidade de se construírem fortificações nos locais de passagem do rio Guadiana, com o objectivo de impedir as surtidas do inimigo (MORGADO, 1989, 225-226).
Desconhecemos de facto quem teria coadjuvado, se é que houve mais alguém, Cristóvão Pantoja na sua obra de fortificação do rio Guadiana, nomeadamente nos concelhos de Beja e de Vidigueira, o certo é que resultou num conjunto de fortes sui generis, em forma de barco, de dimensões variáveis, posicionados na linha de água, ao longo da margem direita do rio. O material aplicado na sua construção – dioritos, pórfiros, xistos, entre outras rochas vulcânicas e sedimentares da região, calhaus e tijolo, argamassados com cal e areia - é, no essencial, o mesmo que se utilizou nos moinhos de submersão, cuja resistência estava suficientemente comprovada e é, até, natural que os próprios moinhos também tivessem servido de baluartes militares na defesa dos vaus numa primeira fase e, numa segunda, de apoio militar aos fortins então recentemente construídos. Alguns dos moinhos como o de Besteiros, a jusante da foz da ribeira de Odearça com o Guadiana e a montante do fortim do Laço (noroeste da freguesia de Baleizão), parecem reportar-nos, pela sua toponímia, a uma função militar.
Utilizando alguma da terminologia náutica podemos descrever a maioria dos fortins do seguinte modo: solidamente “ancorados” sobre afloramento rochoso na margem direita, a “proa” virada para montante resistindo e cortando as águas que se escoam pelos lados de “estibordo”, o do curso normal do rio, e de “bombordo”, o lado de terra munido de fossa. A “popa”, virada para jusante, apresenta formas diversas, sendo plana em três dos fortins (Cf. Mapa aproximado de localização), os nº2 (da Rocha, em Pedrógão), 7 (da azenha de Quintos) e 8 (do Vau de D. Isabel); arredondada a pontiaguda noutros três, os nº3 (do antigo porto de Pedrógão), 4 e 5 (respectivamente, do Laço e das Águas Perdidas, em Baleizão); sem definição num outro que se encontra sobre encosta suave, com formato triangular equilátero, o nº1 (do Escrivão, em Pedrógão), e inexistente no forte rectangular de encosta, bem acima do curso de água, o nº6 (de Vale Beirão).
O fortim nº8, do Vau de D. Isabel, em Quintos, é o mais interessante pelas soluções técnicas encontradas e é também o maior de todos eles - cerca de 22m de comprimento, 8m de largura e 6m de altura. Seguiu, quase à risca, a lição construtiva dos moinhos, acabando por ser abobadado a tijolo, daí o “entaipamento” de algumas das troneiras intermédias que julgávamos fictícias, no sentido de induzir um maior poder de fogo. Afinal, foram as pilastras de tijolo, adossadas pelo interior, para suporte da abobada, actualmente arruinada, que retiraram a funcionalidade a algumas das troneiras, razão por que as vemos abertas alternadamente. Outra questão importante, referida na tentativa de reconstituição que realizámos em 1996 (Cf. Bibliografia), respeita às ameias, pois é muito provável que não tenham de facto existido. Julgamos que a parte superior do parapeito que rodeia o adarve, levemente inclinada, permitiria, desimpedida de merlões, maior mobilidade de tiro sobre a margem contrária. Há até um pormenor curioso que julgamos puder estar relacionado com a estratégia necessária para cobrir com eficiência a margem esquerda: esta margem e os seus cabeços não têm praticamente arvoredo ou outros quaisquer obstáculos que impeçam a identificação rápida de quem se aproxima do local vigiado pelos fortins (teriam permanecido, até hoje, como supomos, os vestígios desse plano de defesa nos tipos de lavoura ou de ocupação consentidos nessas áreas ao longo dos anos?).
Com as enchentes os moinhos e fortins ficavam, mesmo que visíveis, quando não submersos, inactivos, mas também ninguém podia atravessar o rio. A defesa era, pois, natural, sem intervenção humana.
O Fortim nº8 é uma relíquia a merecer outra sorte que não a do abandono, a da degradação constante e ignara a que está sujeito, quer pelas contingências da natureza (agora menos gravosas pela regularização do caudal do rio imposta pela barragem de Alqueva e açude de Pedrógão), quer pelo cada vez maior afluxo de gente, cujo comportamento displicente põe em risco a sua preservação. Os arbustos que crescem no interior ainda não foram suficientes para lhe desmantelar a estrutura que se mantém sólida, porém o resto da abobada, na “proa”, já patenteia as patologias clássicas dos edifícios negligenciados – fissuras, infiltrações, tijolo à vista já sem reboco – sendo o seu desmoronamento eminente.
A sua classificação pelo IPPAR, ou pela instituição estatal que o substitua, como imóvel de Interesse Nacional (com a designação de Monumento Nacional), seria, a todos os títulos, o culminar honroso de uma longa caminhada de séculos, pois cremos que a função militar deste e dos outros fortins não se extinguiu após o armistício da Restauração, prolongando-se mesmo até às lutas entre liberais e absolutistas.
A sua classificação, alargada aos outros fortins, quiçá, aos próprios moinhos do Guadiana e aos ancestrais locais de passagem a vau, permitiria prestigiar e proteger o último grande reduto fortificado do rio em terra portuguesa, nomeadamente no concelho de Beja[4] que é detentor não só do maior conjunto de moinhos, pois a maioria situa-se na margem direita, mas também e principalmente da linha mais expressiva de fortins (são cinco ao todo).
A classificação pelo IPPAR do Fortim Nº8, o do Vau de D. Isabel, pela sua raridade a nível nacional e significado histórico para a região, pelo seu razoável estado de conservação (exceptuando a abóbada, ainda passível de restauro ou de reconstituição fidedigna), traria, sem dúvida, à freguesia de Quintos parte importante do reconhecimento patrimonial, histórico e cultural que há muito lhe é devido. Por perto passava uma das vias romanas, daí a toponímia de Granvia ou Gravia, que ligava Pax-Júlia (Beja) a Arucci Vetus (Aroche) e a Itálica (Sevilha); para lá do monte do Vau de Cima, a maravilhosa Corte Condessa que foi de Eça de Queirós, mas que antes parece ter pertencido a familiar de Geraldo Geraldes “o sem pavor”, hoje em ruínas.
Os vários fortins do concelho distam de Beja cerca de 20km e posicionam-se, normalmente, entre dois sistemas de moinhos, batendo toda a área em redor, vigiando os vaus mais importantes de ligação da margem direita com a margem esquerda. É, pois, necessário o levantamento criterioso dos fortins, mas também dos moinhos e dos pisões, dos locais de passagem, reminiscência das canadas e dos movimentos de transumância, para que se proceda condignamente à sua protecção e valorização.
Dos concelhos da Vidigueira e de Moura já não há, no Guadiana, mais moinhos para ver, pelo que restam os de Serpa e Mértola, em número muito inferior aos de Beja, para não referir a importância das estações arqueológicas.
Quanto aos fortins, não é demais dizê-lo outra vez, constituem uma raridade no âmbito do património edificado de cariz militar em Portugal, decorrendo daí a necessidade urgente de se proceder à sua classificação singular, ou conjunta, como Monumento Nacional.
Todos sabemos que por onde correu e corre um rio, correu e corre também, desde tempos recuados, a par e passo, a vida, porque o rio é gente e também é História. Nos casos de Beja, Serpa e Mértola, constitui, igualmente, o seu mais ancestral baluarte cultural, quase intacto nos testemunhos humanos que ainda preserva, enquanto que, de Pedrógão para montante, preservada a memória através das prospecções proporcionadas pela EDIA, emerge agora uma boa parte da esperança num futuro melhor para o Alentejo e para Portugal.

Leonel Borrela
Bibliografia



BORRELA, Leonel –“Fortins do rio Guadiana”. In Diário do Alentejo ( 29
Março de 1996).

BORRELA, Leonel –“A linha defensiva do rio Guadiana durante a
Restauração de Portugal”. In Diário do Alentejo (17 Maio de 1996).

BORRELA, Leonel –“A defesa abaluartada da cidade e os fortins do
Guadiana”. In Diário do Alentejo ( 11Outubro de 1996).

BORRELA, Leonel –“Mais um fortim no Guadiana”. In Diário do Alentejo ( 13
Abril de 2000).

MATTOS, Gastão de Mello – Nicolau de Langres e a sua obra em Portugal.
Lisboa: Comissão de História Militar, 1941.

MORGADO, Amilcar- “A defesa da fronteira terrestre”. In Historia das
fortificações portuguesas no mundo. Direcção de Rafael Moreira. Lisboa:
Alfa, 1989. pp.221 e segs.

RIBEIRO, Manuel – Vida e morte de Madre Mariana Alcoforado. Lisboa: Sá
da Costa, 1940. p.83

VIANA, Abel- “Notas históricas, arqueológicas e etnográficas do Baixo-
Alentejo”. In Arquivo de Beja. Beja: C.M.B., 1948. Vol.V. pp.3-62.















[1] Parte deste texto integrou, em 2003/2004, a Instrução de um Processo de Classificação a requerer ao IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico) relativo os fortins do rio Guadiana, estudo prático da cadeira de Valorização do Património Cultural, do curso de História da Universidade de Évora.
[2] Segundo Amílcar Morgado (1989, 221) “Para se ter uma ideia da importância da ciência das
fortificações nas guerras do século XVII e, pelo menos, da primeira metade do século XVIII, veja-
se o que consta da tese primeira das Theses da Architectura Militar, apresentadas a Luís Serrão
Pimentel pelo seu discípulo Simão Madeira nos mesdos do século XVII; […] Os principais fins da
Architectura militar são dous, o pr.º permanecer seguro no lugar forteficado; o segundo rezistir
com menor gente, e menos perda, à muita do inimigo, e fazer-lhe grande damno.”
[3] Cristóvão Pantoja era irmão de Rui de Melo e cunhado de Mariana Alcoforado, a célebre religiosa
bejense presumível autora das Lettres Portugaises escritas a um oficial francês, conde de Chamilly,
que nos auxiliou durante a Restauração.
[4] Do concelho da Vidigueira absolutamente já nada subsiste dos fortins, dos moinhos e dos vaus. O açude de Pedrógão, recentemente finalizado, demoliu, há seis anos, o moinho da aldeia; o fortim do porto de Moura noticiado por Abel Viana em 1948 foi demolido aquando da construção da ponte Vidigueira/Moura, cerca 1980. Os fortes da Insuínha e da Rocha, assim como cerca de 20 moinhos, sendo os mais interessantes os de Almoxarife e da Rabadoa, com estruturas romanas nas proximidades, e o do Catalão, ficaram totalmente submersos nas águas do regolfo do açude de Pedrógão.